quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Charada

É verão numa das cidades mais quentes do país e ninguém está esperando por uma chuvinha. Justamente no dia em que ele chorou na frente de estranhos - coisa que ele não fazia há anos - enquanto ele caminhava para a rua, começou a chover e ninguém tinha um guarda-chuva. Ele tinha!

Além dele, as únicas pessoas na rua que tinha guarda-chuvas vestiam branco. E ninguém sabe porque raios ele notou isso, se suas lágrimas não mentiam que aquele era um dos piores dias do ano para o garoto.

- Garoto uma pinóia!

Por que as outras pessoas não tinham guarda-chuvas?

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Não está fora de mim, isso não existe!

Olhar-se no espelho não era mais a mesma coisa. Não era o seu reflexo apenas o que ele via, mas tudo o que existia; e nada fora daquelas luzes eram reais.

Sua dor era a única 'do' mundo e não 'no' mundo.

Mas não era bem dor o que ele sentia, se parecia mais com mosquitos sangue-sugas em seu pênis. Há algo mais egocêntrico que isso num homem?

Errei: era sim dor; há parte do corpo que doa mais num homem que o seu pênis?
Mas não era bem sexo o que ele queria, não era sexo o que ele fazia. Estamos falando apenas de um espelho e não era de si mesmo que ele estava se enchendo.

Ele queria tudo, mas não sabia que o espelho só reflete o que se encontra em sua frente. Ele não sabia, não sabia, não sabia... juro!

Então ele tentou entrar naquela moldura, que acabou caindo em cima dele, fazendo-o se cortar em várias partes do corpo. O sangue jorrava da sua derme. Foi quando ele percebeu que não era o único pênis 'do' mundo, mas o único 'no' mundo que sangrava por burrice.

[burrice não, coitado! Era apenas desconhecimento]

Ele entendeu da pior forma o significado de "Solipsismo".

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Lição 1

Faz a gente amadurecer? Ok. Mas se arrepender e ficar a lembrar do tropeço é sádico, principalmente quando a lembrança invade a retina.

Depois de um caleidoscópio de risos, uma vontade de mastigar todas as obras de arte mais influentes do século XX, várias doses depois... Lá estava a fotografia. Ela surgiu entre os trabalhos da faculdade do período retrasado e tão mal-vinda quanto as notas vermelhas dos professores Doutores, lá estava a fotografia.

Uma lâmina fina estava quase rompendo o estômago só de observar o sorriso estampado naquele papel. Quantos apelidos fofinhos e engraçados não foram sussurrados por entre aqueles dentes? Depois daquele orgasmo, ainda na última noite, a decepção veio quando ainda estavam se recompondo. Depois disso, quiseram se decompor e voltar de onde vieram: do pó.

Poderia se arrepender, e se arrependeu, mas poderia ser pior...
Poderia estar morto ao invés do passado.

Lição 1: Arrependimento não mata. Basta aprender a lidar com a dose certa. Não mais que duas gotas é o bastante.



Depois daquele orgasmo, eles tinham tomado toda a garrafa de arrependimento acreditando que era rum.

sábado, 3 de abril de 2010

Ser e não ser

O outono me parece ainda mais triste que o inverno. O inverno é cinza e sem demora se apresenta como tal. O outono é melancólico, mas se inquieta, nos dando esperanças com suas cores quentes. Mas são quentes tão... frias.

Ficamos numa agonia boba de saber se é ou não. E ele não falha: sempre decepciona.

E é lindo, por isso, o outono!

quarta-feira, 3 de março de 2010

Contra-educação

Ah, Orwell...

Por isso que educação é um problema. Aliás, é uma solução perseguida. Pois solução, ou seja, liberdade, para quem não sabe o que fazer dela, é um problema. É um caos. [...]

Ah, me lembra aí: "Paz é guerra... Liberdade é escravidão..."

Não lembro da ordem dos fatores, e tá [SIC] faltando um elemento nessa operação, que eu não sei se é de soma ou de subtração.

[...]




Esse comentário acerca da "liberdade de viver" foi postado no excelente e recomendado blog do meu amigo Tiago Nogueira, Inconstância Absoluta.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Desejo realizado

Foi durante a cabra-cega. Era um jogo de tato. Ganhava, porém, quem soubesse sentir o outro com outras partes do corpo que não fossem as mãos. O cheiro era de carne podre, mas isso ele sabia que partia dele o odor.

Quando finalmente pegou o seu adversário com a mão, sussurrou:
- Não fuja!

O outro poderia ter reivindicado, pois tocar com a mão era trapaça. Mas nada se comparava a voz aveludada do fedorento. Parecia sedutor. E era, afinal. Pois nada nessa vida é mais sedutor que a morte. Nem o sexo é mais sedutor que a morte. Durante uma trepada, tudo o que queremos é morrer numa gozada.

- Isso não é justo... - tentando se livrar.
- Então fuja. - zombou o trapaceiro.

Ainda sussurrava. Ele dançava tango com a língua no pescoço do outro. Isso era zombaria!

- Me diz o que fazer para que eu não vá contigo.
- Não chore nunca mais.
- Isso é possível? - duvidou.
- Você é tão idiota... Perguntou logo para mim? E é petulante também. Acha mesmo que se eu... Por que perguntou "para que eu não vá contigo"? Você não viria. Eu te levaria. Aliás, posso te levar agora mesmo.

Mas o refém nem ligou para as ameaças. Eram ameaças. Eram farinha no vento. Ele ainda estava bobo com a ideia de ser possível nunca chorar na vida. Seria um sonho realizado, imaginem isso!

Um sonho que se realizou, na verdade, pois ele não tinha mais vida. Ela havia sido tomada por um fedorento e ele agora poderia chorar a vontade. Estava ele morto, agora.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Esquinas

- Estou a ponto de fazer a coisa mais perigosa que já fiz!
- Não exagera...
- Não é exagero! - disse ele um pouco zangado.
- É claro que é. É perigoso para você, que é um medroso. Todo mundo no mundo faz isso.
- Não, nem todos no mundo.

Ele ainda estava em dúvida se vestia a camisa branca de listras cinzas ou a estampada. Mas a calça já estava definida. Uma xadrez.

A amiga dele estava a olhar os livros que ele tinha na estante do quarto.

- Você tem "A Mão e a Luva" do Machado? Caramba, você nunca me contou! - agora era ela quem estava zangada.
- Você também tem um monte de livros e eu nunca fiz essa ceninha... - disse ele desconsiderando a mudança de assunto que ela provocou - Olha, que camisa você prefere?
- É bom?
- Ângela!
- Ai, sim. A estampada, eu acho...
- Acha?
- Qualquer uma... Que saco! - balbuciou ela desinteressada - E esse Machado, é bom? Quer dizer, pergunta estúpida, é claro que é bom.
- Hum, não gostei muito não.
- Isso é uma blasfêmia, estamos falando do Machado!

Ele calçou os tênis, alisou a camisa no corpo e sorriu:
- Como estou? - perguntou ansioso.
- Visivelmente nervoso. - decretou ela acendendo um cigarro.
- Nossa...
- Ué, quer que eu minta?

Alguns passos tortos até o portão e mais dois cigarros depois, eles se despediram, indo cada um para um extremo. Ela pegaria o táxi e ele o ônibus. Poderiam eles ter ido juntos no carro, mas ela ainda precisava fazer uma coisa escondida no outro lado da cidade. Ele também iria fazer uma coisa escondida e, por muitos, considerada proibida. Mas eles sabiam o que o outro iria fazer, mas só eles...

O destino dela era terminar algo que nunca deveria ter começado e ele iria tentar começar algo que ela sempre quis que ele fizesse. Ela partia chorando e ele com uma dor de barriga nervosa. E durante toda a viagem ele pensava em como aquela roupa era inadequada, em como a idéia parecia absurda, que Ângela deveria ter ido junto.

Minutos depois, Ângela liga:
- Está chorando? - perguntou ele.
- Tudo acabou, Benjamin.
- Foi melhor...
- E você? Me fala... - disse ela fingindo graciosamente um entusiasmo.
- Oh, minha querida... Bem, aqui parece que tudo começa.
- É por isso que te amo: somos opostos até mesmo em um dia de sol.
- É - riu ele um pouco - e nunca ninguém acreditaria que nos conhecemos em um dia de chuva.